Claro que não me lembro do meu primeiro encontro com a cidade de São Paulo, pois meu pai sempre fez shows nessa cidade e eu sempre o acompanhei. Sei que meus pais me contam que a primeira viagem de avião se deu quando eu ainda tinha 2 meses e o itinerário era a cidade de São Paulo.
Também passei diversas temporadas na chácara de minha tia avó Rosa em São José dos Campos o que era normal dar uma esticada até a cidade de SP.
Mais me lembro muito bem quando meu pai foi convidado para montar o estúdio Scatena, na Rua Dona Veridiana. Eu tinha 11 anos e fui passar uma temporada com ele em Sampa. Esse foi o primeiro grande encontro com la ciudad.
Morávamos num apartamento de quatro quartos divididos da seguinte forma: o quarto do meu pai, o quarto do Lúcio Alves, o quarto do Badeco (aliás, um dia desses vou escrever só sobre o Badeco), a quem chamo até hoje de tio e um quarto para mim, o que era considerado o quarto da princesa.
Embora com pouca idade, eu era a dona daquela casa. Providenciava as compras, o que iria ser feito para comermos, arrumava a bagunça deles (que não era pouca), mantinha os armários impecáveis (sou filha da Yvonne), enfim brincava de casinha legal.
Foi nesse ano de 1969 que passei meu primeiro aniversário longe da minha mãe e dos meus amigos. Adoro festejar aniversário e eles sempre foram muito comemorados. Quando fiz 40 anos, o dia 11 de julho caiu num sábado e a festa começou na sexta e terminou na terça-feira seguinte.
Tem um detalhe, meus pais esperam bater 11 da manhã, hora de registro do meu nascimento, para fazer o maior alarde. Sempre a mesma coisa. Podem me dar os parabéns depois da meia noite, mas às 11 da manhã ficam disputando quem falará comigo. Se por acaso ligo para o meu pai antes dessa hora, ele sempre diz, minha filha você ainda não nasceu então daqui a pouco falo contigo.
Nesse aniversário de 11 anos eu acordei e não tinha mais ninguém em casa. Meu pai já tinha saído para trabalhar e deixado um bilhete para que eu fosse encontrar com ele, no estúdio, às 11 da manhã. Não havia nenhuma menção sobe o meu aniversário. Nenhum telefonema. Nada. Pensei, tem tão pouco tempo em SP e já se esqueceram de mim?
Sinceramente, fiquei desolada. Me senti tão abandonada. Acostumada a tantas festanças, estava aquela “princesa” solitária e desamparada.
Meus aniversários sempre são com chuva. Já me acostumei ao fato, principalmente se estou no Brasil. Claro, inverno é sinal de chuva por aqui.
Só para se ter uma idéia, quando fiz 30 anos, passei meu aniversário num barco em pleno verão Europeu. Naquele 11 de julho de 1988, essa manifestação da natureza se fez presente. A Córsega, amanheceu chuvosa. Fiquei sentada na proa do barco feliz que a companheira de tantos anos não havia se esquecido de mim, nem no Mediterrâneo.
Portanto, claro que, naquele dia de julho de 1969, em São Paulo chovia sem parar. Cumpri as minhas obrigações (que eram divertidas, imagina uma guria dessa idade comandando uma casa e funcionários?), vesti uma roupa quente, capa de chuva, galochas, me muni de um bom guarda-chuva e fui ao encontro do meu amado pai, preocupada em não me atrasar.
Meu pai é uma das pessoas mais chatas com horário que conheço.
No meio musical é famoso pela sua genialidade, severidade e pontualidade o que acaba dando problemas a muitos músicos que, como eu, não são um primor nesse quesito.
Às vezes computo a minha impontualidade, que hoje até está bastante atenuada, a uma rebeldia ao Severo – um dos apelidos do meu pai no meio artístico e o outro é Bill, como o Tom (Jobim) o chamava e eu também.
Meu pai marca hora assim: passo na esquina de tal rua com tal rua para lhe apanhar, as 15:46 hs. Parece horário de vôo norte americano. Eu sempre questiono, por que não as 15:30 ou 15:45?
Ele faz uma explicação enorme que o sinal da rua tal leva tantos minutos e ele vira não sei onde e mais um monte de detalhes que me deixam perplexa em pensar como uma pessoa é capaz desses cálculos.
O pior é que ele passa RIGOROSAMENTE naquela hora marcada e se você não tiver não conte com ele para uma volta no quarteirão, conte apenas com uma bela bronca na hora em que conseguir encontrar com ele.
Vocês imaginam o que está sendo para o Bill, que viaja sem parar para fazer show, os atuais e constantes atrasos dos aviões?
Coitado!!!
Então lá fui, em direção ao estúdio, preocupadíssima em chegar na hora certa.
Esse universo de estúdio permeia a minha existência desde os primeiros respiros. Comecei a incursão a esse ambiente na Rádio Nacional, onde eu ia acompanhar meu pai em seu trabalho. O que me fascinava era passar horas ao lado do sonoplasta e seus truques maravilhosos que eram capazes de imitar qualquer tipo de som. De patas de cavalo no chão de terra a chuva com tempestades assombrosas. Até hoje, meu grande sonho é fazer radio novela. Quem sabe um dia?
E da Rádio Nacional a milhares de estúdios, em muitos lugares pela a vida a fora. Estúdios acompanhando meu pai e depois, eu mesma atuando. Então, desde que nasci, esses espaços são parte de mim.
Aprendi, desde sempre, que quando a luz vermelha se acende, não podemos entrar naquele espaço, pois estão gravando e um barulhinho que seja, joga tudo por água abaixo. E quando se está dentro, o fazer silêncio é fundamental.
Cheguei ao estúdio com pontualidade e o segurança me pediu que eu entrasse. Contestei que a luz vermelha estava acesa. Ele insistiu para que eu entrasse que era ordem do meu pai.
Temerosa abri a porta e entrei, meu pai ergueu sua batuta e a orquestra atacou o mais lindo parabéns para você que escutei em toda a minha vida.
Foi essa, a primeira lembrança que tenho da cidade de São Paulo.
Quem tem uma memória como essa, dificilmente terá uma relação com essa cidade que não seja de amor.